
“A grande aposta”, “O Lobo de Wall Street”, “Wall Street – Dinheiro nunca dorme”: todos esses filmes ocuparam o imaginário coletivo como “o” retrato do mercado financeiro. São histórias de excesso, ganância, fraude, adrenalina. Divertem, chocam, rendem memes. Mas ajudam pouco quem quer, de fato, construir patrimônio.
Discretamente, em meados de 2023, foi lançado o documentário “Tune Out The Noise”, dirigido por Errol Morris. Sem supercarros, sem mansões, sem traders gritando no telefone, ele conta a história da maior revolução financeira desde o nascimento do capitalismo: o desenvolvimento das estratégias indexadas e dos ETFs, cuja gênese está na ideia de que as finanças são uma ciência, profundamente ligada à Universidade de Chicago e à revolução intelectual que empoderou o investidor comum.
Assistir ao documentário é quase como fazer uma disciplina condensada de finanças quantitativas, história econômica e comportamento humano. Abaixo, listamos 10 temas que mostram isso.
O documentário lembra que a revolução dos ETFs não começou em Wall Street, e sim em artigos acadêmicos aparentemente “chatos”: Samuelson, Fama, Markowitz, entre outros. A tese central é incômoda para o ego humano: preços carregam tanta informação que tentar bater sistematicamente o mercado é, para a maioria, uma luta contra a estatística.
É a diferença entre assistir a um filme sobre um roubo em vez de ler o manual de engenharia do cofre. A mídia se apaixona pelo assalto. A ciência está obcecada pelo mecanismo.
Para o investidor pessoa física, a lição é direta: ou você trata finanças como uma disciplina baseada em dados, métodos e evidência, ou você vira figurante do show dos outros.
No filme, a própria trajetória da hipótese de mercados eficientes aparece como pano de fundo para uma ideia simples e poderosa: o mercado é uma gigantesca máquina de processar informação em tempo real.
Quando um dado de inflação sai nos EUA, uma decisão de juros é anunciada ou uma crise geopolítica começa em algum canto do mundo, em minutos você vê câmbio, curva de juros, ações e ETFs se reajustando em cadeia, do Japão ao Brasil.
Não há “alguém” puxando um fio invisível: é uma multidão de agentes, modelos e algoritmos recalculando preços ao mesmo tempo, como se o planeta inteiro fosse um grande computador rodando a mesma função: transformar informação nova em preço novo.
A consequência prática é incômoda, mas decisiva: se essa máquina global já incorpora praticamente tudo o que é público em poucos segundos, a missão de “vencê-la” de forma consistente deixa de ser um ato de habilidade e vira uma luta estatisticamente ingrata.
A primeira carteira de índice passivo “de verdade” não nasceu para o investidor pessoa física, e sim para resolver um problema previdenciário bem concreto.
Em julho de 1971, a equipe de research da Wells Fargo, em São Francisco, liderada por John “Mac” McQuown, criou para o plano de pensão da Samsonite um fundo que simplesmente replicava o mercado de ações da NYSE, com cerca de 6 milhões de dólares. A ideia era radical para a época: em vez de tentar bater o mercado, era preciso aceitar a hipótese de mercados eficientes e comprar o mercado inteiro de forma sistemática.
Esse fundo institucional cumpria três funções ao mesmo tempo:
Era, na essência, uma carteira de índice passivo antes mesmo desse rótulo existir como indústria e, mais tarde, chegar à bolsa como ETF. Apenas em 1976, essa lógica chega ao varejo com o lançamento do First Index Investment Trust, depois do Vanguard 500 Index Fund, que replicava o S&P 500 e abriu a porta da indexação para o investidor comum.

Uma mensagem martelada ao longo de “Tune Out The Noise” é que a grande ruptura da indexação não foi só intelectual, mas econômica: ela atacou frontalmente o custo de investir. Nos anos 1970, quase 95% dos recursos em fundos nos EUA estavam em produtos com taxas de entrada entre 7,5% e 8,75%, além de taxas anuais na casa de 1% a 1,5%. Era comum o investidor começar já “perdendo um ano” de retorno só na porta de entrada.
A partir de 1960, o Center for Research in Security Prices (CRSP), em Chicago, passou a compilar preços mensais, dividendos, ajustes de capital e deslistagens de todas as ações comuns da NYSE desde 1926 até o início dos anos 1960 (algo como 500 a 1.000 empresas ao longo do período), pela primeira vez tratadas em uma base única, limpa e pesquisável em computador. Foi o big-bang de toda a revolução.
De repente, em vez de opiniões soltas sobre “a bolsa é cassino”, havia dezenas de milhares de observações de retornos que podiam ser testadas, decomposições de risco, séries de drawdowns, tudo aquilo que Fama, Lorie, Fisher e companhia precisavam para tirar a discussão de achismo e levar para o terreno da estatística.
Quando esses dados foram processados, o choque foi numérico: olhando de 1926 a 2000, mesmo incluindo a Grande Depressão de 1929, guerras e inflação, o mercado acionário americano entregou um retorno composto de cerca de 10,7% ao ano, com 1 dólar investido em ações no fim de 1925 virando algo na casa de US$ 300–400 já no fim dos anos 1980, enquanto o mesmo dólar em títulos longos de governo mal passava de US$ 13.
Desses 10,7%, algo como 3 pontos vinham da inflação, 4 de dividendos e o restante de crescimento real de lucros e reprecificação, mostrando que o “investimento perigoso” era, na verdade, a classe de ativos que mais tinha remunerado o risco no longo prazo.
Na época em que as ideias de Chicago começavam a sair dos papers e entrar no mundo real, ninguém tinha um mapa claro de onde cada gestor realmente jogava. Os nomes eram floreados, com termos em inglês e superlativos, que não dizem muito sobre o que realmente é a estratégia. Essa realidade não mudou muito desde então, especialmente no Brasil.
É aí que entra a análise de estilo como um verdadeiro raio-x das estratégias.
Primeiro com o William Sharpe, no início dos anos 1990, usando retornos de centenas de contas de fundos de pensão para decompor o desempenho em exposições sistemáticas a índices de mercado.
Em um estudo clássico com 388 carteiras, cerca de 89% da variação dos retornos mensais foi explicada apenas pela combinação de classes de ativos usadas como fatores, mostrando que boa parte do que parecia “habilidade” era, na prática, uma mistura de estilos e riscos já presentes nos mercados.
Logo depois, em 1992, a Morningstar pega esse espírito e o transforma em uma ferramenta visual simples: o famoso style box, uma grade 3x3 que cruza tamanho (large, mid, small) com perfil de ações (value, blend, growth) para localizar cada fundo em um quadrante específico.
De repente, fica fácil enxergar se um gestor de “valor” estava escorregando para “growth”, se um fundo de large caps tinha metade da carteira em small caps e, principalmente, comparar o que o marketing prometia com o que os dados entregavam.

A gestora de recursos Dimensional é, na prática, o “braço empresarial” de toda essa revolução acadêmica em finanças.
Fundada em 1981 por David Booth, Rex Sinquefield (e depois Larry Klotz), ex-alunos da Universidade de Chicago, a gestora nasce explícita e declaradamente para aplicar a hipótese de mercados eficientes e os achados de Fama, Banz e, mais tarde, Fama-French, dentro de produtos reais para investidores institucionais.
Logo na largada, o primeiro mandato da casa é justamente um portfólio de small caps americanas: em 1981, a Dimensional lança o US Micro Cap Portfolio, uma carteira sistemática focada nas menores empresas da bolsa dos EUA, desenhada para capturar o prêmio de tamanho (small caps) recém-documentado na literatura. Em 1982, vem o famoso “9–10 Fund”, baseado no índice CRSP 9–10, que reúne o quintil inferior (menores de 20 por cento) das ações da NYSE.
Esse fundo de small caps, hoje conhecido como DFA US Micro Cap Portfolio (DFSCX), continua existindo, com histórico ininterrupto desde 23 de dezembro de 1981, e é frequentemente citado como o mais antigo fundo dedicado exclusivamente a small caps em operação, além de a Dimensional ser apontada como gestora do mais antigo “small-cap index fund” dos Estados Unidos.
Em quase tudo na sociedade moderna, e especialmente na estadunidense, você é cobrado para ser “o melhor”: o melhor aluno, o top performer, o número um do ranking. Se você está na média, está perdendo. O paradoxo é que, justamente em investimentos, essa mentalidade de vencer todo mundo costuma ser destrutiva.
O mercado é uma máquina de “soma quase zero” antes de custos e negativa depois das taxas. Para cada história de alguém que “bateu o índice” por alguns anos, há uma multidão de investidores anônimos ficando para trás, pagando caro por tentar jogar um jogo em que, estatisticamente, as chances são ruins.
É aqui que o filme traz a sua ideia mais sofisticada com um insight aparentemente simples: você não precisa ser melhor que o mercado; você precisa colocar o mercado para trabalhar para você. Indexar, manter custos baixos e disciplina alta é uma forma de virar sócio do sistema, não competidor dele.
A simplicidade, nesse contexto, não é falta de ambição; é a tecnologia que inverte o jogo.
Em vez de gastar energia tentando provar que é mais inteligente que a média, você usa décadas de pesquisa e estrutura de mercado para capturar justamente essa média que (composta ao longo de 20, 30, 40 anos) é tudo, menos medíocre.

A sensação de incômodo ao assistir ao filme é quase automática: enquanto lá fora a revolução da indexação virou padrão, no Brasil ainda estamos discutindo se ela começa ou não.
Nos Estados Unidos, os ETFs já somam mais de 14 trilhões de dólares, com a indústria passiva superando a ativa em estoque e capturando mais de 80% dos fluxos líquidos de fundos na última década.
No Brasil, mesmo com crescimento anual de dois dígitos, o mercado de ETFs ainda gira em poucas dezenas de bilhões de reais, algo em torno de 1% de um sistema de fundos que já passa de 10 trilhões.
Não é só uma questão de tamanho. É uma questão de mentalidade. Em mercados desenvolvidos, o investidor médio já entendeu que o padrão da carteira é ser bem indexado e bem alocado. Aqui, o padrão ainda é produto caro, concentrado e vendido na narrativa da performance do gestor (pessoa).
Dá um certo choque de perspectiva perceber que boa parte dessa revolução (mercados eficientes, bases de dados como o CRSP, primeiros fundos de índice, prêmio de small caps) aconteceu há mais de 50 anos e, ainda assim, as ideias de Chicago seguem ecoando pelos corredores da Faria Lima e de Wall Street como se fossem novidade.
Hoje, gestores, analistas e fintechs do mundo inteiro operam, em maior ou menor grau, dentro do arcabouço criado por essa geração: usamos seus modelos, copiamos suas construções de carteira, repetimos suas intuições em apresentações e relatórios. Estamos todos sentados nos ombros de gigantes, mesmo quando fingimos que estamos “reinventando” o mercado.
No fim do documentário, Eugene Fama deixa no ar a pergunta que amarra tudo: quando veremos uma próxima revolução desse tamanho? Quando as “placas tectônicas” das finanças vão se mover de novo com a mesma força dos anos 60 e 70? Não sabemos ainda.
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